domingo, 3 de maio de 2020

Solitude é diferente de Solidão


Não costumo partilhar dessa ideia tão difundida de que antigamente é que era bom - esse antanho paradisíaco onde as pessoas eram felizes, sábias e gregárias. Hoje são infelizes, estúpidas e solitárias. Dantes as pessoas viviam no campo edénico, hoje vivem em cidades sujas e barulhentas. Mesmo o campo, hoje, já não é o que era dantes. Enfim, percebe-se a ideia... Parece-me que uma leitura bem mais razoável da história vê o ser humano continuamente com as suas angústrias, tristezas e misérias; mas também com as suas alegrias e prazeres. Uma coisa parece ser indiscutível, contudo, em termos de bem-estar material e em termos de respeito pelos princípios básicos da pessoa, nunca a história esteve tão desenvolvida como hoje. Os homens sempre passaram fome, a lei malthusiana foi sempre implacável – a taxa de mortalidade infantil era medonha e a esperança de vida da população muito reduzida. A população era ignorante e analfabeta. Existia a escravatura, as crianças levavam porrada de criar bicho, as mulheres praticamente não tinham direitos, a pena de morte era sempre a aviar, a tortura era o prato do dia… enfim, podia apresentar-se aqui uma lista bem extensa de toda a miséria humana que atravessou a história.
Contudo, as pessoas lá arranjavam o seu cantinho no coração para terem a felicidade possível – esta não precisa de eletricidade, telemóveis, automóveis, boas casas e outros confortos materiais – basta ter saúde para se ter a capacidade de ter uma explosão de felicidade – o simples facto de estar vivo é já a felicidade. Isto, a propósito de hoje se falar muito da solidão como uma espécie de mal moderno. Vamos lá a ver – a solidão sempre existiu e existirá. Basta sermos humanos para sentirmos a solidão. Aliás, se não sentissemos a solidão não daríamos valor ao convívio, à socialização. Como em tudo o resto na vida, para eu valorizar e saborear o que é bom, tenho que saber o outro lado desse bem - a falta dele. Só assim o vejo como mau.
Estava a ver um vídeo no canal do brasileiro Leandro Karnal, chamado, logicamente, “Prazer, Karnal”, (só vi mais dois vídeos dele, mas deu para perceber que além da inteligência tem um excelentissímo sentido de humor) e o senhor escreveu um livro em que faz a distinção entre “Solidão” e “Solitude”, na linha, aliás, do que os ingleses distinguem entre “lonileness” e “solitude”. A solidão é o sentimento de falta de outras pessoas, é a insatisfação do nosso instinto gregário. Mas o estar sozinho nem sempre tem que ser solidão. O facto de estarmos sozinhos é uma oportunidadde para ouvirmos a nossa voz interior, de conversarmos connosco próprios. Muitas vezes fartamo-nos de ouvir os outros, já não podemos mais com a sua voz. E a solitude é essa oportunidade de descansarmos dos outros, de falarmos connosco ou com Deus, de sentir a calma do silêncio, de pararmos. E parar é absolutamente essencial para a higiene da mente. É também a altura em que podemos ler um livro, ouvir música calmamente, estar apenas a sentir o sol na pele sem termos que ter um assunto de conversa. A solitude é boa e só lhe damos valor quando estamos saturados por não ter sossego, “um minuto só para nós”.
A verdadeira chave daquela felicidade prática do dia a dia parece ser o equilíbrio. E neste caso é o equilíbrio entre o estar só e estar acompanhado. Se reconhecermos que o estar só é importante para a nossa higinene mental e emocional, se nos esforçarmos a aprender a estar sós, a não ser assaltados pelo grito mudo da solidão, aprendemos a transformá-la em solitude e começamos a apreciar e não a deseperar quando estamos sozinhos.


terça-feira, 28 de abril de 2020

Fausto, primeira parte



A tradução do João Barrento é magistral. Segue o esquema rimático do Goethe sem perder pitada do sentido do texto, isto é, sem sacrificar o seu significado. O único senão da tradução é que, devido ao facto de estar obrigada à rima certa, pode soar às vezes algo vetusta, algo camoniana.

Os personagens principais são Mefistófeles (o diabo), Fausto - um desiludido estudioso e professor; e Margarida - uma inocente e esbelta rapariga por quem Fausto se vai apaixonar.
Fausto não encontra alegria na vida. Sempre procurou o segredo da felicidade, que para ele era encontrar o segredo do mundo, a sua fórmula ou alquimia. Não conseguiu encontrar a fórmula da criação nem a felicidade, que para ele andavam juntas. Mefistófeles então apareceu-lhe e propôs-lhe um pacto – em troca da felicidade que prometia dar a Fausto, este tinha que, depois disso, sujeitar-se a segui-lo, para o mal ou para o “bem”.

Mefistófeles conseguiu dar a felicidade a Fausto através do amor à jovem rapariga, Margarida. O arrebatamento da paixão, do amor por um ser humano, era afinal a fórmula para a felicidade que faltava ao doutor.

Goethe não escreveu a peça na forma de um romance e, portanto, a ação é muito sintetizada, desenvolvida com brevidade. Tudo acontece relativamente depressa. Mas Goethe é um mestre na arte de transmitir o sentimento. As palavras de Margarida e do Fausto apaixonado trespassam-nos o coração na sua simplicidade e genuinidade - na sua essencialidade. Tal como na sua poesia lírica, Goethe consegue dar-nos nesta peça dramática, com palavras descomplicadas, mas certeiras e eficazes, o afeto e a beleza de uma flor, de um riacho, de um raio de sol. Em Goethe, a natureza e a alma humana falam-nos diretamente ao coração. O seu deslumbramento e encantamento pela beleza das pequenas coisas do mundo, de algum modo encontram o caminho da nossa alma e desse lugar bonito e puro que todos temos dentro de nós.