Não costumo partilhar dessa ideia tão
difundida de que antigamente é que era bom - esse antanho paradisíaco onde as
pessoas eram felizes, sábias e gregárias. Hoje são infelizes, estúpidas e
solitárias. Dantes as pessoas viviam no campo edénico, hoje vivem em cidades
sujas e barulhentas. Mesmo o campo, hoje, já não é o que era dantes. Enfim,
percebe-se a ideia... Parece-me que uma leitura bem mais razoável da história vê
o ser humano continuamente com as suas angústrias, tristezas e misérias; mas
também com as suas alegrias e prazeres. Uma coisa parece ser indiscutível,
contudo, em termos de bem-estar material e em termos de respeito pelos
princípios básicos da pessoa, nunca a história esteve tão desenvolvida como
hoje. Os homens sempre passaram fome, a lei malthusiana foi sempre implacável –
a taxa de mortalidade infantil era medonha e a esperança de vida da população muito
reduzida. A população era ignorante e analfabeta. Existia a escravatura, as
crianças levavam porrada de criar bicho, as mulheres praticamente não tinham
direitos, a pena de morte era sempre a aviar, a
tortura era o prato do dia… enfim, podia apresentar-se aqui uma lista bem extensa de
toda a miséria humana que atravessou a história.
Contudo, as pessoas lá arranjavam o seu
cantinho no coração para terem a felicidade possível – esta não precisa de eletricidade,
telemóveis, automóveis, boas casas e outros confortos materiais – basta ter
saúde para se ter a capacidade de ter uma explosão de felicidade – o simples
facto de estar vivo é já a felicidade. Isto, a propósito de hoje se falar muito
da solidão como uma espécie de mal moderno. Vamos lá a ver – a solidão sempre
existiu e existirá. Basta sermos humanos para sentirmos a solidão. Aliás, se
não sentissemos a solidão não daríamos valor ao convívio, à socialização. Como
em tudo o resto na vida, para eu valorizar e saborear o que é bom, tenho que
saber o outro lado desse bem - a falta dele. Só assim o vejo como mau.
Estava a ver um vídeo no canal do brasileiro Leandro Karnal, chamado, logicamente, “Prazer, Karnal”, (só vi mais dois vídeos
dele, mas deu para perceber que além da inteligência tem um excelentissímo sentido
de humor) e o senhor escreveu um livro em que faz a distinção entre “Solidão” e
“Solitude”, na linha, aliás, do que os ingleses distinguem entre “lonileness” e
“solitude”. A solidão é o sentimento de falta de outras pessoas, é a
insatisfação do nosso instinto gregário. Mas o estar sozinho nem sempre tem que
ser solidão. O facto de estarmos sozinhos é uma oportunidadde para ouvirmos a
nossa voz interior, de conversarmos connosco próprios. Muitas vezes fartamo-nos
de ouvir os outros, já não podemos mais com a sua voz. E a solitude é essa oportunidade
de descansarmos dos outros, de falarmos connosco ou com Deus, de sentir a calma
do silêncio, de pararmos. E parar é absolutamente essencial para a higiene da
mente. É também a altura em que podemos ler um livro, ouvir música calmamente, estar apenas a sentir o
sol na pele sem termos que ter um assunto de conversa. A solitude é boa e só
lhe damos valor quando estamos saturados por não ter sossego, “um minuto só
para nós”.
A verdadeira chave daquela felicidade prática
do dia a dia parece ser o equilíbrio. E neste caso é o equilíbrio entre o estar só e
estar acompanhado. Se reconhecermos que o estar só é importante para a nossa
higinene mental e emocional, se nos esforçarmos a aprender a estar sós, a não
ser assaltados pelo grito mudo da solidão, aprendemos a transformá-la em
solitude e começamos a apreciar e não a deseperar quando estamos sozinhos.